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domingo, junho 22, 2003
vidros
Ela necessitava de receber o que não lhe podia dar. Amor era o pedido. Eu, naquele momento apenas lhe podia dar o empréstimo do meu corpo. Um corpo sujo e emocionalmente estéril. As únicas emoções que lavravam a minha carne eram as do cio. Animal nu cercando a presa que se me oferecia encurralada por ela própria. Sobre o pecado devorei, bebi o ciclo do seu sangue e no final apenas restou a minha carcaça. No derrame da fragilidade do homem os corpos deixaram-se cair pelo tecido do banco, ficando momentaneamente imóveis nas palavras petrificadas pelo arrependimento dela. Eu não me arrependi, tinha-lhe dito como era e não podia ser de outra forma. Os seus lábios ganharam novamente vida e timidamente começaram a desflorar nos meus ombros nus, pequenas carícias de saliva envenenada pelo seu amor não correspondido, é sempre assim, também eu não sou correspondido num outro amor que pelo meio se intrometera docemente sem a permissão assentida pelo acaso do encontro de olhares que se encontram. Eu no entanto continuo imóvel, gostaria de dizer que não pensava em nada, mas não foi o caso. Estava a pensar na minha horrível indiferença aos húmidos e calorosos beijos desenrolados pelos seus lábios perdidos à busca de uma parte sensível e esquecida de mim. É então que olho para o lado e vejo o banco traseiro todo desarrumado, livros, CDs e jornais antigos espalhados pelo esquecimento da arrumação da alma. De repente no intuito de reparar todo o mal e sujidade causada, impetuosamente os meus braços se multiplicam na direcção de todos os objectos desarrumados e tento inutilmente dar um arrumo à situação. Estava a ser estúpido, resolvi parar. Apercebi-me que o meu ventre e a parte interior das coxas estavam cobertas de sangue. O sangue derramado pelo ciclo que gera vida e sacrifício da mulher que estava a meu lado toda em carinhos não correspondidos quando de repente, começa suavemente a limpar-me com um lenço. Em cada gesto, senti-lhe a voz que o segurava, era uma voz ferida que se tentava levantar com um enorme esforço até que, cambaleou nas inevitáveis perguntas dos porquês. Antecipei-me e disse-lhe para não perguntar, ninguém ia fazer perguntas, não valia a pena, pelo que ela me respondeu que então também não haveriam respostas. Tinha razão sem perguntas não existem respostas, mas já o contrário não é verdade, sem respostas existem perguntas. Salvei-me a tempo da minha fragilidade, assegurada pela frieza do silêncio vincado nas sombras do meu rosto sob a lua escondida sob as nuvens do temporal que se avizinhava. No caminho de regresso, sem ninguém saber como, começamos a falar das personagens dos Reality Shows que nos invadiram o horário nobre e o cabeçalho dos noticiários televisivos. Acabamos por falar dos outros para não falarmos de nós, numa manobra simpaticamente inofensiva para cada um de nós. Na despedida desviei o seu beijo para uma das minhas faces.
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