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sexta-feira, agosto 22, 2003

 

Tinha acabado de entrar em casa dos meus pais, nas minhas mãos levava roupa suja para a colocar a lavar na máquina. Quando acabo de fechar o portão, rapidamente o silêncio amargurado e revoltado, teceu-se em mim como um polvo agarra a sua presa e a devora lentamente de uma só vez.

Era o meu irmão mais novo que estava sentado no mármore frio das escadas, deixando que a vegetação do jardim recolhesse as suas lágrimas, a sua voz afogada, os seus olhos vidrados e translúcidos sem direcção, perdidos nas memórias ininteligíveis perante a realidade do presente. Perguntei-lhe porque chorava sofregamente. O seu rosto estava sulcado de pequeníssimos cristais do sal que começavam a ganhar forma. Rapidamente percebi que já ali estava à muito tempo, a navegar perdido, em busca de um reconforto... Respondeu-me com a voz de um movimento ferido e amedrontado, apontando para a direita a meus pés. Quando olho, a primeira reacção foi de recuar para trás e recomeçar do ponto onde tudo se poderia tornar diferente. Bastava um atraso, ou até mesmo um adianto. Não importava, bastava qualquer coisa, até mesmo um espirro que chamasse a atenção. Tudo menos o que estava a meus pés. Com a desolação do meu irmão a dilacerar-me os ouvidos, nada mais que a impotência, para descrever tal momento.

A meus pés, um cesto plástico, azul, quadriculado e partido nos cantos como uma cana rachada, pobre embalagem para o descanso eterno da nossa cadela que jazia inocente com o seu pêlo ainda quente e brilhante dissimulando por breves momentos a morte onde estava perdida. Naquela quietude, vejo-a a rodear as minhas pernas com saltos e piruetas , roçando-se de seguida nos calcanhares, aproveitando para abocanhar as calças e deixar-se ir de rasto pela fria cerâmica, como se fosse um lago de gelo e eu o seu cão do antárctico, puxando-a até os seus maxilares cederem com o cansaço de seu peso e de novo, agora em círculos, ladrando o pedido de um carinho, de uma festa sobre o seu pelo que lhe caia sobre os olhos, ocultando-os sempre da miséria da vida e do mundo.

O meu primeiro movimento, vigiado atentamente pelo meu irmão como um guardião, foi intrínseco no eco seco do pássaro que voava e de repente caiu, embatendo desamparado no chão imobilizado. Ajoelhei-me, os olhos translúcidos, com um gesto de ave percorri a serenidade estendida, de lado, com as patas e a cabeça também estendidas contíguas ao cesto que acolhia o sono forçado e sem retorno, com ele a minha indignação a revolutear o início de uma tempestade como as monções que varrem em dilúvios os climas tropicais.

Agora estou aqui e só penso em expulsar os meus sentimentos no funeral da escrita, nas frases que fazem o cortejo fúnebre e se chora por detrás dos véus pretos de renda. Não que a escrita seja um túmulo, mas é no entanto uma bonita lápide de pedra polida e negra, para que se possam gravar todas as recordações e imagens de quem existiu e nos preencheu com a sua existência, nunca efémera perante as palavras escritas.

Era uma cadela especial, unia-nos a todos um pouco, mais do que o que pensávamos. Uma cadela que o meu pai ensinou a perseguir os gatos e a os detestar, lembrando perseguições do Tom & Jerry em versão cão e gato.

Lá fora apenas o meu pai e um único som existente, agreste como os ventos de uma tempestade de areia sobre os desprevenidos que atravessam desertos em busca de si próprios. A lâmina de aço côncava como uma concha empunhada de um cabo de madeira que nada mais era senão o braço do meu pai a escavar e a escavar, o som dilacerante do aço apunhalando a terra, explodia sobre a porta que estava aberta, adivinhando-se os movimentos do exterior. No final ouvia-se o cair da água sobre a terra, como se ouvem as primeiras gotas das monções pesadas e abauladas explodindo sobre o pó da terra seca. O meu regou a terra que a sepultava, para que a sua alma rapidamente germinasse e se escapuli-se da dor que nos circundava como um predador ronda o seu animal ferido e no momento de quando menos se espera, o ataque ganha forma e atinge-nos cruelmente sem perdão e sem erros, a realidade.

Na memória, existirá sempre uma vedação palitada branca e uma correria louca de uma cadela minúscula e peluda atrás dos gatos...

A história é verídica, foi há dois anos, a 26 de Julho de 2001. Hoje, o meu pai trouxe outro cão cá para casa, apesar de ter sido amor à primeira vista, eu afastei-me daquele cão... sei que não conseguiria suportar a perda de um segundo cão... pelo que prefiro afastar-me...

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Vermelhar   
o palato tem cor rosada. vermelho quando irado